Em defesa da memória e do território kaingang
No livro de poemas "Retorno ao Ventre", Jr. Bellé
conecta a história da família ao movimento de resistência vivido pelos povos
indígenas no Sul do país
Quando as lembranças de Pedrolina deterioravam-se pelo
Alzheimer, ela ligou para o sobrinho e escritor Jr. Bellé para contar
uma história até então desconhecida. A família deles, majoritariamente branca,
estabelecida no sudoeste do Paraná, vinha de raízes indígenas, possivelmente
kaingang. É um relato parecido com a de diversos brasileiros e atravessa a própria
formação do país: vítima de um bugreiro alemão, sua tataravó era uma criança
indígena que nasceu, viveu e morreu sem registros oficiais ou alguém para
relembrar sua trajetória às gerações seguintes.
Foi o autor que tomou para si esse compromisso e preencheu
as lacunas da memória com ficção em Retorno ao ventre - Mỹnh fi
nugror to vẽsikã kãtĩ, publicado pela editora Elefante. Na obra, tia Pedrolina
também aparece, mas, diferente da vida real, ela está no leito do hospital
quando compartilha as escassas lembranças sobre sua ancestral. A partir
desse momento, os poemas começam a refletir sobre as consequências do violento
processo de ocupação de terras indígenas por colonos brancos: a "marcha
para o oeste". Um de seus episódios inaugurais foi a primeira expedição
militar da República em direção ao "grande sertão", ou "vazio
demográfico", como era chamado o sudeste do Paraná. Contudo, o lugar era o
lar e o território de inúmeros povos originários.
Para construir esta poesia narrativa, Jr. Bellé recorreu
a documentos históricos presentes nos arquivos de espaços como o Museu dos
Povos Indígenas do Rio de Janeiro e o Portal da Legislação Histórica do Governo
Federal. Parte desta documentação está inserida no livro, como uma
composição artística de uma aldeia de casas subterrâneas, uma carta sobre a
primeira incursão militar ao sudoeste do Paraná redigida pelo capitão do
exército José Ozório e um registro de doação de terras com a comprovação
da presença dos povos originários no local.
Em meio a encontros e desencontros, memórias e
esquecimentos, a obra percorre o passado para explicar o presente. Além de
abordar as violências e resistências vividas pelas populações indígenas um
século atrás, o autor ainda comenta sobre os problemas atuais, como a
reivindicação do direito à demarcação de terras, ao passo que celebra
conquistas de lideranças como Sônia Guajajara, Ailton Krenak, Davi Kopenawa,
Iracema Gah Té (kujá kaingang que luta pela demarcação do Morro Santana,
em Porto Alegre, a quem o livro é dedicado), e muitas outras.
Bilíngue, o livro foi escrito em português e traduzido ao
kaingang pelo professor André Caetano, liderança da T.I. de Serrinha, no Rio
Grande do Sul, com revisão final do professor Lorecir Koremág. Já a orelha é
assinada por Eliane Potiguara, uma das mais importantes poetas brasileiras e
fundadora da Rede Grumin de Mulheres Indígenas, enquanto as ilustrações são da
artista e ativista Moara Tupinambá.
Vencedor do Prêmio Cidade de Belo Horizonte na categoria
Poesia, Retorno ao ventre reconstrói as lacunas da memória com a
ficção e homenageia os primeiros habitantes do país, que viviam aqui muito
antes de ele ser denominado “Brasil”. A obra também reivindica um novo olhar
para o Sul, onde há séculos a população indígena luta contra a invisibilização. Jr.
Bellé explica: “falo sobre um local onde muitos já habitaram e ainda
habitam: kaingang, kaiowá, mbyá, xokleng, xetá... Os povos do Paraná têm
memória, e ela precisa ser preservada e exaltada”.
Ficha técnica
Título: Retorno ao ventre - Mỹnh fi nugror to vẽsikã kãtĩ
Autor: Jr. Bellé
Editora: Elefante
ISBN: 9786560080423
Páginas: 168
Preço: R$ 60
Onde encontrar: Editora
Elefante
Sobre o autor:
Doutorando em Estudos Literários (UFPR), mestre em Estudos Culturais (USP) e especialista em Jornalismo Literário (ABJL), Jr. Bellé é jornalista, pesquisador e programador de literatura do Sesc Av. Paulista. Tem quatro livros publicados: “Trato de Levante”, cuja obra foi adaptada para o cinema; “amorte chama semhora”; “Mesmo se saber pra onde”, que recebeu o Prêmio Variações de Literatura e teve menção honrosa no Prêmio Casa de Las Américas; e Retorno ao ventre, obra mais recente lançada pelo autor e publicada pela editora Elefante, que venceu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte na categoria Poesia, em 2023. Filho de Dona Bete e seu Valcir, nasceu em Francisco Beltrão, no sudoeste do Paraná, uma terra indígena ancestral.
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