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O Brejo Que Canta (A Casa Afundada) Uma lenda parnanguara



Lenda foi retratada em filme de Ciro Matoso 


“Cheguei a conhecer, já octogenário, o João Bonzinho, que tinha um sítio lá para as bandas do Porto dos Padres, assim chamado o lugar onde tiveram os Jesuítas uma fazenda de criação, na foz do Emboguaçu. Neste sítio o velho cultivava algodão e foi ele quem me contou a história do "brejo que canta". (Vicente Nascimento Junior: História, Crônicas e Lendas)
Com efeito, existe a meio caminho da cidade para a embocadura daquele rio um terreno vasto e alagadiço, onde o lírio do brejo cresce viçoso. Com as chuvas o lugar se transforma num lago e com bom tempo prolongado continua a ser temível atoleiro do qual o gado por instinto se afasta receoso de desaparecer no sumidouro.
E assim falava na sua pitoresca linguagem, o João Bonzinho:
—O brejo canta sim sinhô, mas só uma vez no ano, à meia-noite justa de quinta pra sexta feira santa e nessa hora quem por ali passa, ouve muito bem o batido dum fandango ao som de duas violas e da cantiga dos violeiros. 10 que Deus permite que saiam as suas almas do Purgatório na noite da Paixão pra correrem o fado em castigo da ofensa ao "Sinhô Morto”.
—Almas de quem?—perguntei.
—Dos violeiros e dos dançadores, os excomungados que cantavam e fandangueavam na noite em que Nosso Sinhô morreu... Escuite mecê: No lugar do brejo era um terreno enxuto, bom, de terra branca e firme e nele morava em casa de pedra e cal um tal de Roberto Inglês, ruivo e herege como o diabo, não gostando de Deus nem dos Santos. Decerto esse mardito era criminoso e até diziam que fora pirata. O meu avô que o conheceu de vista, sempre que o encontrava fazia o sinal da Cruz e com ele nunca quis parceria, receioso do castigo do Céu... Ora, numa quinta feira maior estava a vila entregue aos ofícios da Semana Santa, enlutados os moradores e até o Capitão Mór dera ordem à milícia que fizesse a guarda com a boca dos arcabuzes voltada para o chão e não permitissem cantorias nem folguedos até a hora da Aleluia sob pena de cadeia, quando o danado, em conluio com o "coisa ruim", resolveu uma folgança pra essa noite. Andava por aqui nesse tempo o coronel Afonso Botelho, que assistiu a missa devotamente com um laço de crepe no copo da espada, e a Câmara, com o estandarte do Rei, de luto, que o vereador mais moço conduzia, foi incorporada à Matriz fazer guarda ao Sinhô Morto.
Tudo era respeito ao dia, mas no caminho do Porto dos Padres o inglês, zombando das coisas santas, procurou e achou uns infelizes que aceitaram o convite: uns dez soldados da tropa acampada no porto de pai Berê, no Rocio Grande, e que se destinava a ir depois da Páscoa em canoas pelo Cubatão dos Morretes até o Porto de Cima e subir a Serra em descoberta dos campos e sertões, e as mulheres perdidas que enxameavam naquele tempo na rua da passagem pra o arsenal, depois Rua das Mortes(*) A meia noite estrondeava o fandango, longe da vila e por isso despercebido da autoridade. A cachaça corria aos copázios. Manéco Eduvirges e Domingos Pedrão, violeiros e já embriagados, cantavam quadrinhas blasfemas, desafiando a majestade divina, com aprovação do diabo ruivo e quando cantavam esta:
Si Deus morreu porque “quiz”
Não é caso pra "chorá"
Bate firme, minha gente
Bate forte, até "suá"...
a casa moveu se e todos sentiram que afundava, mas antes do alarme ainda ouviu se o Pedro e o Eduvirges cantarem mais esta barbaridade:
Si morreu pra nos "salvá"
O "fio" do Padre Eterno,
Ele que vá "buscá nois"
Lá nas "profunda" do Inferno!
O movimento acentuou se e o pânico se manifestou naquelas almas entenebrecidas pelo vício e pela impiedade, despertada nelas a compreensão do desastre e morte inevitável. O primeiro impulso foi de fuga, mas quando tentaram evadirem-se já as portas e janelas estavam entaipadas pelo lodo mole que invadia o interior. Apagaram se as luzes Nas trevas e começando a respirar dificultosamente, aqueles desgraçados se debatiam. Não havia salvação possível! O fim pela asfixia era fatal. Não tardou a agonia. O terreiro há pouco ainda sólido, laranjeiras e cajueiros, dum para outro momento se fizera brejo a engolir a casa do blasfemo. Consumando a tragédia, a habitação desapareceu no abismo e com ela quantos estavam no fandango sacrílego e fatal. No dia seguinte os sitiantes vizinhos, que iam para a vila assistir a missa da sexta-feira santa, viram com espanto um brejo no local onde de véspera se erguia a moradia do inglês e isto sem que tivesse chovido. E brejo ficou o lugar maldito e, como na noite de quinta feira santa do ano seguinte, alguém por ali passando, noite alta, ouvisse claramente o batido dum fandango ao toque das violas e o cantar dos violeiros, correu espavorido a contar na vila o prodígio que a tradição trouxe, de geração em geração até o presente, enchendo de terror a gente supersticiosa que a tudo se arriscará neste mundo, menos transitar pela estrada que margeia o trágico alagadiço, na noite da Paixão de Jesus.
(*) Rua das Mortes, trecho da atual Rua Faria Sobrinho entre as ruas Marechal Alberto de Abreu e Presciliano Corrêa, assim chamada em virtude do assassinato, ali, num botequim, do mestre Vilas da corveta de guerra Santa Cruz e de outros marujos, num conflito em 1819.

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